A Primeira Greve de Trabalhadores da História

Artigo

Joshua J. Mark
por , traduzido por Ricardo Albuquerque
publicado em 04 Julho 2017
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Disponível noutras línguas: Inglês, francês, espanhol

O mais importante valor cultural no antigo Egito era a harmonia, conhecida entre os egípcios como ma'at. Tratava-se do conceito de equilíbrio pessoal, comunitário e universal, que permitia ao mundo funcionar como devia, de acordo com a vontade dos deuses. Através de maior parte da história egípcia, esta crença servia bem à cultura. A principal obrigação do rei era sustentar o princípio de ma'at e manter o equilíbrio entre o povo e seus deuses. Ao fazê-lo, ele atuava para que todos os que estivessem abaixo dele estivessem bem cuidados; que as fronteiras fossem seguras; e que os rituais e ritos acontecessem de acordo com a tradição aceita. Todas estes aspectos levavam ao bem-estar do povo e da terra, pois o reinado do soberano assegurava que todos teriam trabalho e saberiam seu lugar na hierarquia social.

Em certas ocasiões, porém, o rei encontrava dificuldades em manter esta harmonia devido à pressão das circunstâncias e falta de recursos. Esta situação é claramente visível ao final de cada um dos três períodos conhecidos como "impérios" e algumas vezes durante, mas um interessante incidente ocorrido no Novo Império (c. 1570-c. 1069 a.C.) destaca-se de forma especial, pois ocorreu antes do declínio real do poder no Novo Império e, conforme alguns estudiosos, marca o início do fim: a primeira greve de trabalhadores registrada na história.

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Ramesses III
Ramsés III
Unknown Artist (Public Domain)

Antecedentes

Ramsés III (1186-1155 a.C.) é considerado o último dos bons faraós do Novo Império. Ele defendeu as fronteiras do Egito, administrou as incertezas das relações cambiantes com nações estrangeiras, restaurou e adornou os templos e monumentos do país. Queria ser lembrado do mesmo modo que Ramsés II (1279-1213 a.C.) - como um grande rei e um pai para seu povo -, e, no início de seu reinado, teve sucesso nesse objetivo. Porém, o Egito não era mais uma nação tão poderosa quanto no período de Ramsés II, e com a redução de seu status sobreveio a correspondente redução de recursos provenientes de tributos e comércio.

Em 1178 a.C., uma confederação conhecida como os Povos do Mar organizou uma invasão em grande escala do Egito, o que contribuiu para reduzir ainda mais os recursos do país. Os Povos do Mar tinham tentado conquistar o Egito duas vezes antes, durante os reinados de Ramsés II e de seu sucessor imediato, Merenptah (1213-1203 a.C.). Os dois faraós repeliram os invasores com sucesso mas o exército que se aproximava agora, durante o reinado de Ramsés III, era muito maior e havia menos recursos disponíveis.

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Ainda assim, ele montou uma forte defesa do país, fortificando fortalezas ao longo das fronteiras e pelo interior, além de lançar sua marinha contra os navios invasores. O faraó iniciou uma conscrição nacional em cada distrito e reuniu um exército, avaliando com seus generais qual a melhor forma de derrotar os inimigos no mar: atraindo-os perto o suficiente da foz do Nilo, de maneira que ficassem ao alcance dos arqueiros egípcios, mas ainda longe de um ponto de desembarque.

Bronze Age Mediterranean Invasions & Migrations
Invasões e Migrações da Era do Bronze no Mediterrâneo
Alexikoua (CC BY-SA)

Seu plano funcionou e os Povos do Mar foram derrotados na batalha marítima, muitos abatidos pela chuva de flechas da costa ou afogados quando seus navios foram emborcados, mas as perdas egípcias no combate terrestre parecem ter sido enormes. As inscrições de Ramsés III referentes ao evento somente focam na brilhante vitória marítima na foz do Nilo e se calam sobre a batalha terrestre. Deve ter havido muito mais vidas egípcias perdidas do que os registros oficiais admitem, o que resultou na perda de mão de obra agrícola e colheitas pobres, menos mercadores para comercializar produtos e a perda de trabalhadores que, em outras ocupações, mantinham a economia funcionando.

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Ramsés III teve uma impressionante vitória, porém, que rivalizava com os relatos do triunfo de Ramsés II em Kadesh, em 1274 a.C.. Em seguida, mantendo o princípio de ma'at, o faraó promoveu melhorias nos templos e monumentos durante uma grande viagem do sul ao norte do país. Neste período, também realizou ajustes nos impostos, assegurando-se que os funcionários estivessem desempenhando suas funções de forma competente, e corrigiu a execução de rituais em desacordo com a tradição. Com tais medidas, Ramsés III tentava elevar o Egito ao status que já ocupara no auge do Novo Império, mas mesmo ele deve ter reconhecido que não era o suficiente. O custo da comitiva real à medida que percorria o Egito deve ter sido exorbitante, esgotando ainda mais os já escassos recursos do tesouro, pois as melhorias e renovações que ordenou exigiam despesas crescentes.

Era um problema triplo: redução da mão de obra, graças às perdas de vidas e o custo da guerra contra os Povos do Mar; funcionários corruptos; e colheitas pobres.

Portanto, Ramsés III ordenou várias expedições a terras estrangeiras com objetivos comerciais e militares, todas muito bem-sucedidas. Seu maior feito ocorreu na expedição de dois meses à Terra de Punt - um país rico em recursos que não vinha sendo visitado pelos egípcios desde os tempos de Hatshepsut (1479-1458 a.C.). Tais esforços deveriam ter recuperado o tesouro mas, de algum modo, isso não aconteceu. Os estudiosos oferecem diferentes teorias para explicar o porquê disso, mas a maioria concorda que o problema central concentrava-se em três fatores: redução da mão de obra devido às perdas de vidas humanas e o custo da guerra contra os Povos do Mar; funcionários corruptos, que desviavam recursos para seus próprios cofres; e as condições climáticas desfavoráveis, que resultaram em colheitas pobres.

A Greve

Por mais de 20 anos, Ramsés III tinha feito o melhor que podia para o povo e, à medida que se aproximava de seu 30° aniversário de coroação, começaram os planos para o grande festival do jubileu em sua homenagem. O egiptólogo Toby Wilkinson assinala:

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A corte agora voltava-se para o jubileu de 30 anos do rei, determinada a promover uma celebração digna de tão glorioso monarca. Não haveria limites para as despesas, nem improvisos. Somente as mais luxuosas cerimônias serviriam. Foi uma decisão funesta. Sob a pompa e circunstância, o estado egípcio encontrava-se seriamente enfraquecido pelos recentes esforços. As perdas militares de 1178 a.C. ainda eram agudamente sentidas. O comércio exterior com o Oriente Próximo jamais havia se recuperado totalmente da orgia de destruição dos Povos do Mar. Os cofres dos templos podiam estar repletos de cobre e mirra, mas os suprimentos de grãos - o principal artigo da economia egípcia - achavam-se perigosamente baixos. Em vista deste panorama, os preparativos para o jubileu drenariam ainda mais os recursos. (334)

Os problemas começaram em 1159 a.C., três anos antes do festival, quando os salários mensais dos construtores de túmulos e artesãos em Set-Ma'at (“O Lugar da Verdade”, mais conhecido como Deir el-Medina) chegaram com quase um mês de atraso. O escriba Amennakht, que parece ter atuado também como uma espécie de representante dos trabalhadores, negociou com os funcionários locais a distribuição de grãos, mas esta foi apenas uma solução temporária para um problema imediato; a causa subjacente da falta de pagamento nunca foi abordada.

Em vez de descobrir o que tinha dado errado e tentar prevenir a repetição do problema, os funcionários dedicavam-se à preparação do grande festival. Houve novos atrasos do pagamento dos trabalhadores em Deir el-Medina até que, conforme escreve Wilkinson, “o sistema de pagamento da necrópole parou de funcionar por completo, dando origem às primeiras greves registradas na história” (335). Depois de aguardar por 18 dias o pagamento, os trabalhadores chegaram ao limite. Eles depuseram suas ferramentas e marcharam pela cidade, gritando “Estamos famintos!” A marcha começou pelo templo mortuário de Ramsés III e então continuou com uma manifestação de pessoas sentadas próximo ao templo de Tutmósis III.

Os funcionários ordenaram que bolos fossem entregues aos trabalhadores grevistas, esperando que ficassem satisfeitos e fossem para casa.

Os funcionários locais não faziam ideia de como lidar com a situação; nada dessa natureza jamais ocorrera na história do país. Ma'at aplicava-se para todos, do rei ao camponês, e esperava-se que reconhecessem seus lugares no esquema do universo, agindo de acordo. Trabalhadores revoltando-se e exigindo seu pagamento era simplesmente uma impossibilidade, porque violava o princípio de ma'at. Sem saber como lidar com o problema, os funcionários ordenaram que bolos fossem entregues aos trabalhadores em greve, esperando que ficassem satisfeitos e fossem para casa.

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Os bolos não foram suficientes, porém, e no dia seguinte os homens ocuparam o portão meridional do Ramesseum, o armazém central de grãos de Tebas. Alguns invadiram o local, exigindo o pagamento, o que levou os funcionários do templo a chamarem o chefe de polícia, um homem chamado Montumes. Ele avisou aos grevistas para deixar o templo e retornar ao trabalho, mas eles se recusaram. Indefeso, Montumes recuou e deixou o problema para os funcionários resolverem. O pagamento atrasado foi finalmente efetuado após negociações entre os sacerdotes e os grevistas, mas não demorou para que os homens retornassem aos seus vilarejos e descobrissem que o próximo pagamento atrasaria também.

Sarcophagus of Ramesses III
Sarcófago de Ramsés III
genibee (CC BY-NC-SA)

Novamente os trabalhadores entraram em greve, desta vez ocupando e bloqueando todos os acessos ao Vale dos Reis. A consequência deste ato era que nenhum sacerdote ou familiar seria capaz de entrar com oferendas de comida e bebida para os falecidos, uma séria ofensa à memória dos que haviam passado para a vida além-túmulo. Quando os funcionários apareceram com guardas armados e ameaçaram remover os homens pela força, um grevista respondeu que ele danificaria as tumbas reais antes que eles pudessem atingi-lo e, assim, criou-se um impasse entre os dois lados.

Nessa altura os homens não estavam simplesmente numa paralisação para receber pagamentos atrasados, mas sim protestando contra o que viam como uma violação séria de ma'at. O rei deveria cuidar de seu povo, o que, neste caso, significava garantir que os funcionários supervisionassem corretamente os pagamentos para que acontecessem no prazo estipulado. Já tinham se passado três anos desde que as greves tinham começado e a situação não mudara: os trabalhadores não recebiam seus pagamentos, promoviam uma paralisação, os funcionários então buscaram meios para pagá-los e o mesmo cenário repetia-se no mês seguinte. Os trabalhadores e artesãos dos túmulos afirmavam que ocorria uma grande injustiça e queriam a situação resolvida de uma vez por todas.

O governo local, no entanto, ainda não entendia como lidar com o problema. Era sua responsabilidade manter a ordem e, especialmente com o jubileu se aproximando, garantir a paz e preservar a dignidade do faraó. Não podiam comunicar à capital que os trabalhadores de Tebas recusavam-se a trabalhar ou corriam o risco de serem executados por falhar em cumprir seu dever; assim, nada fizeram. Conforme as tradições culturais, deveriam ter comunicado o fato ao vizir, que então procuraria uma solução para o problema. O vizir, de fato, veio a Tebas nessa época para reunir estátuas para a celebração do jubileu, mas não há indicação de que tenha sido informado sobre os trabalhadores grevistas.

O jubileu de 1156 foi um grande sucesso e, como em todos os festivais, os participantes esqueceram-se de seus problemas cotidianos para dançar e beber. A questão não estava resolvida, porém, e os trabalhadores continuaram suas paralisações e sua luta por pagamentos adequados nos meses seguintes. Por fim, alguma forma de resolução parece ter sido alcançada, na qual os funcionários começaram a pagar os trabalhadores em dia, mas a dinâmica do relacionamento entre eles tinha mudado - como a aplicação prática do conceito de ma'at - e jamais retornaria ao que era antes. Ma'at estava sob a responsabilidade do faraó, que devia agir de acordo para sua manutenção, não os trabalhadores; e, ainda assim, os homens de Deir el-Medina tinham decidido corrigir por si mesmos o que viam como uma violação das políticas que ajudavam a manter o equilíbrio e a harmonia essenciais. O povo comum fora forçado a assumir a responsabilidade do rei.

Significado

As greves de trabalhadores e artesãos de túmulos foram especialmente influentes porque estes homens estavam entre os mais respeitados e bem pagos do país. Se eles eram tratados tão mal, raciocinava-se, então os demais podiam esperar coisas piores. A influência das paralisações foi tão grande também porque estes trabalhadores tinham muito a perder, estavam todos conscientes do princípio de ma'at e seu dever em relação a ele e, ainda assim, escolheram se levantar contra uma prática governamental que sentiam ser injusta. O que começou como uma reclamação sobre salários atrasados tornou-se uma ação de protesto contra a corrupção e a injustiça. Próximo ao fim das paralisações, os trabalhadores não mais estavam cantando sobre sua fome, mas sobre a questão maior:

Nós estamos em greve não por causa da fome, mas porque temos uma acusação séria a fazer: coisas ruins estão sendo feitas na terra do Faraó. (Wilkinson, 337)

O sucesso das greves de trabalhadores e de artesãos de túmulos inspirou outros a fazer o mesmo. Assim como os registros oficiais da batalha com os Povos do Mar nunca relataram as perdas egípcias no combate terrestre, também não houve nenhuma menção às paralisações. O registro da greve está num rolo de papiro descoberto em Deir el-Medina, provavelmente redigido pelo escriba Amennakht. O precedente de trabalhadores deixando suas ocupações foi estabelecido por estes eventos e, embora não haja relatórios oficiais de situações similares, eles agora entendiam que tinham mais poder do que pensavam. Paralisações são mencionadas na última parte do Novo Império e no Período Tardio e não há dúvida de que a prática começou com os trabalhadores em Deir el-Medina, no tempo de Ramsés III.

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Sobre o tradutor

Ricardo Albuquerque
Ricardo é um jornalista brasileiro que vive no Rio de Janeiro. Seus principais interesses são a República Romana e os povos da Mesoamérica, entre outros temas.

Sobre o autor

Joshua J. Mark
Escritor freelance e ex-professor de filosofia em tempo parcial no Marist College, em Nova York, Joshua J. Mark viveu na Grécia e na Alemanha e viajou pelo Egito. Ele ensinou história, redação, literatura e filosofia em nível universitário.

Citar este trabalho

Estilo APA

Mark, J. J. (2017, Julho 04). A Primeira Greve de Trabalhadores da História [The First Labor Strike in History]. (R. Albuquerque, Tradutor). World History Encyclopedia. Obtido de https://www.worldhistory.org/trans/pt/2-1089/a-primeira-greve-de-trabalhadores-da-historia/

Estilo Chicago

Mark, Joshua J.. "A Primeira Greve de Trabalhadores da História." Traduzido por Ricardo Albuquerque. World History Encyclopedia. Última modificação Julho 04, 2017. https://www.worldhistory.org/trans/pt/2-1089/a-primeira-greve-de-trabalhadores-da-historia/.

Estilo MLA

Mark, Joshua J.. "A Primeira Greve de Trabalhadores da História." Traduzido por Ricardo Albuquerque. World History Encyclopedia. World History Encyclopedia, 04 Jul 2017. Web. 27 Abr 2024.